Um Encontro de Luta — co-adminstração do Sistema de Alerta Prévio e comunidades se reúnem no Brasil
Por Alexandre Andrade Sampaio
Com áreas de vegetação nativa a perder de vista, uma vibrante cena cultural, um dos parques tecnológicos e educacionais mais avançadas do mundo, a descrição de São José dos Campos, metrópole do Vale do Paraíba brasileiro, poderia fazer-nos pensar na cidade como o destino ideal para turismo, trabalho e vida. Aliás, num passado não muito distante, era com essa perspectiva que as pessoas iam buscar conforto e bem estar na região que nos idos do começo do século XX era considerada uma estância climática propícia para o tratamento de tuberculose em razão do chamado “mar em constante calmaria” — o milenar parque de nome Banhado.
Foi nesta cidade que decidimos realizar, em junho de 2022, o primeiro encontro de organizações e comunidades co-administradoras do Sistema de Alerta Prévio (SAP) e da Rede de Comunidades Impactadas por Instituições Financeiras Internacionais (Rede de Comunidades). O encontro contou com as 9 organizações que co-administram o SAP para a América Latina e Caribe [International Accountability Project (IAP) — global; Instituto Maíra — Brasil; Sustentarse — Chile; Fundación para el Desarrollo de Políticas Sustentables (FUNDEPS) — Argentina; Associação Interamericana para Defesa do Ambiente (AIDA) — regional; Rede de Comunidades — regional; Plataforma Internacional Contra la Impunidad — regional; Coesión Comunitaria e Innovación Social (CCIS) — México; e o Coletivo sobre Financiamiento e Inversiones Chinas, Ambiente y Derechos Humanos (CICDHA) — regional] e com todas as comunidades co-criadoras da Rede de Comunidades (Movimiento Ríos Vivos Antioquia, da Colômbia, Associação de Favelas de São José dos Campos, do Brasil, Movimento Cajón del Maipo, do Chile, e Mujeres Changas, também do Chile).
Tivemos também o privilégio de sermos acompanhados por lideranças e organizações de extrema relevância para nossos trabalhos e vida: uma comunidade quilombola da região de Araripe no Brasil, impactada pelo Novo Banco de Desenvolvimento; uma comunidade do Piauí, também no Brasil, impactada pelo Banco Mundial; uma liderança representativa do Grupo Prevenção Amazônia, que é coletivamente impactado por projetos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do BNDES e outras instituições financeiras; uma comunidade de camponeses paraguaios impactados pelo Banco Mundial; e um movimento guatemalteco impactado pelo BID.
Além disso, estiveram presentes as seguintes organizações: Bank Information Center, Sinergia Animal, Earth Rights International, The Hunger Project, Fondo Centroamericano de Mujeres, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, e a organização CONECTAS Direitos Humanos, cuja parceria foi essencial para a realização e coordenação do evento.
A escolha por São José dos Campos como cenário para nosso encontro, buscou prestigiar todos os aspectos pelos quais a cidade é conhecida, o que propiciaria acolhimento digno às importantes comunidades e organizações que convidamos para nos acompanhar. No entanto, encontramos uma realidade completamente distinta do esperado. Fomos surpreendidos por uma realidade policialesca de monitoramento e perseguição, no município que descobrimos ser classificado como a primeira cidade inteligente do Brasil — ou seja, que possui um sistema de monitoramento e comunicação de segurança com câmeras e agentes por toda parte. Fomos informados que nossas reuniões estavam sendo monitoradas e que nossos convidados estavam sendo seguidos, com relatos de casos de pessoas sendo abordadas por agentes à paisana dentro do hotel no qual estavam hospedadas. Ao visitarmos uma das áreas mais prístinas da cidade em termos ambientais, o referido Banhado, descobrimos também que comunidades de ancestralidade quilombola e indígena, que vivem de maneira sustentável na região, lutam contra uma forte especulação imobiliária e uma presença ostensiva da segurança pública, que busca a higienização da área para a construção de parques e condomínios de luxo — primeiro vem o parque e depois o parking, como diria Ailton Krenak. Uma vez fonte de saúde, o Banhado vem sofrendo também com mudanças climáticas e o terreno que o compõe vem queimando por dentro, talvez na mais perfeita expressão do caos necrocapitalista autofágico, disseminando mal estar e doenças respiratórias pela região.
A acolhida ímpar por São José dos Campos, no entanto, não foi suficiente para minar nosso ímpeto de trabalho coletivo, buscando fazer um balanço de nossos esforços e nos planejarmos para um futuro ainda mais promissor, em aliança com as organizações e comunidades. Em relação ao Sistema de Alerta Prévio, ferramenta única de monitoramento prévio de instituições financeiras internacionais, avaliamos como nosso trabalho de prevenção de violações de direitos humanos e ambientais vem disseminando informações e trabalhando com comunidades na América Latina e no Caribe. Discutimos como podemos tornar nossas informações ainda mais acessíveis, atingindo um maior número de pessoas que estejam a par de projetos sobre os quais não foram consultadas e nos quais não figuram suas prioridades comunitárias. Avaliamos a importância de algumas de nossas ferramentas, como nossos Guias de Ação Comunitária, planos de desenvolvimento comunitário, protocolos de consulta, podcasts. Nesse espírito, refletimos e elaboramos um planejamento sobre como melhor utilizá-las e disseminá-las. Ao final, renovamos nossa aliança e nos comprometemos a buscar maiores sinergias para aumentar nossa capacidade de auxílio a comunidades, em parceria com as demais organizações que participaram do evento.
A Rede de Comunidades teve a oportunidade de celebrar a aliança entre os seus membros e os objetivos alcançados coletivamente, ao mesmo tempo que foi prestigiada por representantes de outras comunidades e organizações. As discussões temáticas e incursões territoriais e culturais, presididas pela diretoria da Rede com auxílio da comunidade anfitriã, Associação de Favelas de São José dos Campos, apontam para um futuro mais promissor do que o presente já fraterno e solidário desta rede.
Foram seis dias de trabalho em São José dos Campos, compartilhando abraços, choros, comida, risada, costumes e sonhos para o futuro. Depois de anos trabalhando online, nos dedicamos a uma agenda extremamente intensa, em um ambiente que infelizmente se demonstrou hostil a nossa presença, o que nos fez inclusive temer pela segurança de nossos companheiras e companheiros, mas que minimamente nos trouxe mais empatia em relação ao conflito vivido pela nossa organização anfitriã em seu dia a dia e que seguramente nos fortalecerá na busca pela proteção e bem estar conjunto. Temos muito a agradecer a todas as pessoas que, em um momento de pandemia e todas as suas implicações, conseguiram nos apoiar e contribuir para a construção de nossa história de luta. Esse combate é fundamental para que locais como o Banhado sejam preservados e para que as comunidades que os habitam consigam interromper violações em curso e prevenir aquelas que ainda estão por vir. Esse futuro que buscamos só pode ser alcançado com a força da nossa fraternidade, empatia, mútua proteção e união em rede. A nossa se mostrou à altura do desafio. Obrigado à Rede de Comunidades, às co-administradoras de SAP, a nossas aliadas que vieram nos prestigiar e auxiliar e à São José dos Campos. Voltaremos!
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Alexandre Andrade Sampaio é Coordenador de Políticas e Programas da International Accountability Project para a América Latina e o Caribe.
Todas as imagens são de propriedade coletiva dos participantes do evento.