Os mesmos ventos ainda sopram — Novo Banco de Desenvolvimento, energia de transição e o racismo ambiental

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Por Alexandre Andrade Sampaio e Layza da Rocha Soares

Imagems por Alexandre Andrade Sampaio e Brent Millikan

Paisagem na comunidade quilombola Serra dos Rafaéis.

Òlòrun Kosí Purè, Mãe Bernadete!

Bernadete foi assassinada em agosto de 2023 com nada menos que 14 tiros, em frente a seus netos. Sua importância para o ativismo, para a política e para a cultura brasileira era imensurável. Com Bernadete foi-se uma Ialorixá — líder de religião de matriz africana -, uma líder da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) e mais uma liderança de comunidades tradicionais quilombolas do país. Foi encontrar seu filho, assassinado em 2017. Òlòrun Kosí Purè (Que nossos ancestrais a recebam com amor), Mãe Bernadete!

Em um país de racismo estrutural, onde mais de três quartos da população assinada é negra, a morte de Mãe Bernadete clama ainda mais por uma indignação ímpar! Isso porque ao matar Mãe Bernadete, além matar uma mulher negra, objetiva-se matar uma entidade representativa, e extremamente pública, da luta por direitos históricos dos mais básicos — direitos ao respeito, à participação, à fruir de suas próprias crenças, à terra, à poder plantar e colher por si e para si como povo, à poder viver com dignidade civil, política, econômica, social e cultural. Matar Mãe Bernadete é querer dar um tiro na luta contra o racismo, em povos tradicionais, em quilombolas.

Em um país que permite a morte de uma tão importante representação carnal da luta de um povo que vive no moinho de moer gente há mais de 500 anos, todo cuidado é pouco quando almeja-se fazer algo que possa de alguma forma impactar direitos de povos quilombolas. Não foi o que se deu quando o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) decidiram investir em conjunto 300 milhões de dólares em um projeto eólico na Chapada do Araripe, no Nordeste brasileiro.

Vista da Chapada do Araripe

Em janeiro de 2020, as organizações de direitos humanos e ambiental Conectas Direitos Humanos e International Accountability Project (IAP) foram à região onde estavam sendo construídos os parques eólicos para verificar se haviam comunidades tradicionais sendo impactadas — os documentos disponibilizados no site do NDB nada indicavam nesse sentido. Na série de reportagens “Os Donos dos Ventos”, detalhamos a situação na qual encontramos o território, assim como publicamos algumas das falas de lideranças de comunidades quilombolas que de fato estavam sendo impactadas.

Reunião realizada com a comunidade quilombola da Serra dos Rafaéis em 2022

Devido aos relatos de graves violações de direitos humanos e ambientais, as organizações acordaram com a comunidade de quilombola da Serra dos Rafaéis que um trabalho minucioso de relato do que estava ocorrendo era necessário. Assistimos então à comunidade quilombola da Serra dos Rafaéis a elaborar e aplicar um questionário, cujos dados foram posteriormente compilados e validados em reuniões plenárias no ano de 2022. Nesta oportunidade fomos acompanhados pelo Instituto Maíra, uma organização socioambiental especializada em trabalho com povos tradicionais. Alguns dos resultados da pesquisa liderada pela comunidade, na qual participaram 26 representantes — sendo mais de 70% mulheres -, são os seguintes:

  • Mais de 95% das pessoas não sabia quem estava financiando o projeto
  • Mais de 95% das pessoas não sabia quem estava executando o projeto
  • Mais de 90% das pessoas respondeu que seu meio ambiente havia sido destruído
  • 80% das pessoas relataram pioras em sua saúde ou de seus familiares, incluindo impactos respiratórios pela poeira gerada pela construção e operação do projeto e piora na saúde mental por preocupação com os impactos do projeto
  • 0% das pessoas foram previamente consultadas sobre suas ideias para o desenvolvimento do projeto
  • 0% das pessoas haviam sido consultadas sobre suas ideias para projetos de desenvolvimento para sua própria comunidade, sendo que mais de 70% dos comunitários demonstraram interesse em desenvolver um plano conjunto
  • Mais de 90% das pessoas não tinha ideia de onde ou como prestar queixas em relação aos impactos adversos do projeto
  • 100% das pessoas responderam que sabiam ou pensavam que sabiam como a implementação do projeto poderia ter ocorrido de maneira a causar menos danos para si e suas famílias

Os dados são significativos: demonstram um sistemático desrespeito aos direitos de transparência, liberdade de informação e expressão, participação, inserção e proteção política, social e física de um povo tradicional entre os mais ameaçados do Brasil. De maneira reveladora, escutamos em 2022 que as promessas de melhora de acesso e qualidade a serviços básicos não foram concretizadas: a comunidade relatou que passava vários dias sem energia elétrica sem qualquer aviso prévio; que suas contas de energia não haviam baixada em razão da geração em seu território, não houve melhoria de acesso às escolas e o acesso à saúde continuava restrito a quem tinha meio de locomoção para fazer o percurso de pelo menos meia hora de estrada.

Igreja sede de reuniões da comunidade na Serra dos Rafaéis

Ao perguntarmos aos comunitários o que pensavam sobre o projeto ser classificado como gerador de energia limpa, obtivemos respostas impactantes, tais como: com as obras e aerogeradores, uma quantidade enorme de poeira estava acarretando problemas respiratórios na comunidade; também devido às obras, muitos acidentes de trânsito estavam ocorrendo em razão de buracos gerados nas vias; transeuntes se encontravam em risco devido ao desrespeito por parte de motoristas das empresas que adentravam o território; conflitos comunitários eram recorrentes em razão da influência de trabalhadores da empresa, que apontavam para aqueles que se opunham ao projeto como bloqueadores de oportunidades de emprego e desenvolvimento, muitas vezes oferecendo bebida alcoólica para os jovens a serem influenciados; havia aumentado o consumo de drogas e bebidas na comunidade; lideranças comunitárias estavam se sentindo ameaçadas por pessoas de fora da comunidade e em razão da influência de tais pessoas sobre membros da comunidade; mulheres da comunidade estavam se sentindo acuadas e inseguras com a presença ostensiva de homens de fora da comunidade no território; muitas pessoas estavam com ansiedade pela constante preocupação em relação às incertezas do futuro, inclusive sobre a possibilidade de tornar-se inviável continuar vivendo no local; também era constante o medo de queda da enormes hélices dos aerogeradores e o risco de acidentes devido a grande quantidade de raios atraídos pelas máquinas.

Geradores eólicos na Chapada do Araripe

A óbvia conclusão é que este projeto de geração de energia eólica não é considerado limpo para a comunidade! A entrada desautorizada, sem consulta e consentimento prévio de acordo com o processo decisório comunitário, e o desmatamento que coloca em risco a caça e criação de animais dos quais dependem os quilombolas auferem peso substancial para tal conclusão. Não ajuda que os projetos recebam nomes de santos prezados pela comunidade, numa tentativa desconcertante de criar um conflito ideológico no inconsciente popular, como se ao opor-se a um projeto, estariam opondo-se também às suas crenças fundantes.

Área desmatada em território do povo quilombola da Serra dos Rafaéis para instalação de aerogerador

Ao tentar classificar um projeto com tamanhos impactos socioambientais como gerador de energia limpa, o discurso dominante se volta apenas a um fator tecnológico que se opõem à ultrapassada e temerosa exploração de alta geração de impacto ambiental — como petróleo, gás natural e carvão. Segue-se no entanto com uma exploração territorial de lógica neocolonial, de acumulação primária, ao inviabilizar-se a vivência e sobrevivência de povos historicamente oprimidos, como são os quilombolas. A geração de energia de transição climática, que busca alcançar a verdadeira sustentabilidade, deve prezar por uma sociabilidade humana historicamente justa e respeitosa para que faça jus à classificação de limpa.

Placa de projeto financiado pelo NDB na Chapada do Araripe

Ao financiar operações no Brasil com o parque eólico na Chapada do Araripe, o Novo Banco de Desenvolvimento colocou em cheque seu discurso e suas políticas socioambientais que apontavam para investimentos de real sustentabilidade. Demonstrou que ainda falta-lhe o tato e eficácia na avaliação de seus projetos aprovados para não exacerbar lógicas de opressão e destruição de povos e culturas que sofrem de um racismo e colonialismo socioambiental estrutural e histórico. Requer-se agora ainda mais atenção, uma vez que o NDB atua através de um sistema de confiança na legislação e sistema de justiça nacionais — conhecido como Sistema de Países. O Brasil passou nos últimos anos por uma extensiva desestruturação institucional, legal e política de seu sistema de proteção ambiental e cultural. O novo cenário político, apesar de ideologicamente diverso do neoliberalismo desenfreado, encontra amarras institucionais significativas, como já era de se prever. É significativo que o Supremo Tribunal Federal esteja no momento analisando a tese do Marco Temporal, que caso validada pela corte, significaria um retrocesso de décadas de luta de povos tradicionais que buscam a demarcação e proteção de seus territórios e modos de vida.

Espera-se que a nova administração do NDB, em posse dos fatos revelados pela comunidade quilombola da Serra dos Rafaéis, coloque em prática um modo de atuação distinto, inclusivo, transparente e garantidor de direitos. As violações suportadas por esse povo tradicional deixam claro que, para atuar de acordo com o real direito humano ao desenvolvimento sustentável, a instituição financeira necessita urgentemente aprimorar suas políticas e práticas relacionadas à análise prévia e gestão de riscos socioambientais, garantindo o respeito aos direitos de comunidades locais, sob o risco de perpetuar práticas que podem ser caracterizadas como ‘greenwashing’.

Salve o povo quilombola! Salve Mãe Bernadete!

Mensagem de boas vindas aos pés da igreja do povo quilombola da Serra dos Rafaéis

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Alexandre Andrade Sampaio é líder global para o direito ao desenvolvimento e coordenador para América Latina e Caribe da International Accountability Project.

Layza da Rocha Soares é pesquisadora do Instituto Maíra, doutora em economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), diretora regional da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB-UFF) e do Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (Finde-UFF)

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International Accountability Project (IAP)

IAP is a human and environmental rights organization that works with communities, civil society and social movements to change how today’s development is done.