Amazônia sob análise: tendências de investimentos e violações
Por Layza da Rocha Soares e Alexandre Andrade Sampaio
Tal como apresentado na primeira parte do sexto relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, publicada em 9 de agosto de 2021, não restam mais dúvidas de que o aquecimento global tem sido provocado pelas atividades humanas, de que haverá aumento ainda maior da temperatura mundial e das inúmeras consequências (com eventos extremos) disso para a vida humana. No entanto, ainda é possível evitar um aquecimento ainda maior no final deste século caso mudanças drásticas sejam efetuadas urgentemente, como paralisar as emissões e retirar gases causadores do efeito estufa da atmosfera.
No Brasil, o desmatamento do Bioma Amazônia é a principal causa das emissões brutas de gases do efeito estufa e está associado à expansão de atividades do agronegócio. A ampliação desta atividade e suas conexões, como geração e distribuição de energia, construção de ferrovias e rodovias, dentre outros, têm apresentado um grande desafio para a preservação do meio ambiente e de modos de vida tradicionais na Amazônia. É o que confirmam as tendências de investimentos internacionais para o território, conforme análise da International Accountability Project, do Instituto Maíra e do Projeto Aldeias, através do Sistema de Alerta Prévio (SAP). O SAP é uma iniciativa que busca monitorar projetos a serem financiados por Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) e trabalhar com comunidades e aliados locais para evitar violações de direitos humanos e ambientais.
“Nosso estudo demonstra que instituições financeiras e empresas a elas aliadas continuam na busca do desbravamento desenfreado das fronteiras amazônicas, sem prezar pela autodeterminação dos povos e pela participação de organizações que trabalham com eles. Em um universo de 70 projetos e seu contexto, vimos que a tentativa é a utilização de novos vocábulos, como bioeconomia e crédito de carbono, para que o desmatamento e exploração sigam”, aponta Daniel Lopes Fagianno do Instituto Maíra.
Perante as evidências quanto às mudanças climáticas, a preservação da Floresta Amazônica torna-se fundamental não só para a manutenção de um repositório de carbono relevante para regulação do clima global, bem como para o equilíbrio climático brasileiro. Neste sentido, inúmeras iniciativas, acordos e projetos nacionais e internacionais têm ocorrido sobre a Amazônia em nome de um dito progresso e desenvolvimento “sustentável” da região e, especialmente, em razão da crise climática. Entre essas diferentes iniciativas, estão: o Pacto de Letícia, Programa Estratégico Sementes (liderado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento — BID), iniciativas com financiamento internacional sobre créditos de carbono, particularmente, a Coalizão LEAF (Lowering Emissions by Accelerating Forest Finance). Os detalhes dessas iniciativas, bem como uma análise da conjuntura socioeconômica, política e ambiental da Amazônia entre 2020 e 2022, são apresentados em nossa análise “Um panorama das ameaças à Amazônia: crise climática, contexto político e projetos financiados por IFIS”.
Ainda que essas iniciativas pudessem ser consideradas interessantes de um ponto de vista puramente econômico, elas têm ocorrido sem o devido envolvimento de comunidades tradicionais amazônicas e com baixo grau de detalhamento de seus objetivos e conceitos, o que traz grandes preocupações sobre suas capacidades de preservar a biodiversidade e o modo de vida das populações da região. “Os povos da floresta não são escutados e envolvidos nos espaços de tomadas de decisões, menos ainda as crianças e adolescentes e juventudes, que são o agora e o presente. Sem uma escuta ativa e envolvimento de fato dessas gerações é impossível falar de sustentabilidade e de barrar o aquecimento do planeta, por exemplo.”, aponta Daniela Silva, diretora do Projeto Aldeias.
Além disso, iniciativas como LEAF podem contribuir para uma mercantilização ainda maior da natureza — na medida em que os direitos sobre seu uso são transformados sem o consentimento ou respeito a demais direitos dos povos que vivem e preservam o território. Tais iniciativas parecem incentivar projetos privados que buscam grandes recursos na Amazônia, em detrimento de comunidades que são desprovidas de recursos financeiros e que muitas vezes sequer tiveram suas terras reconhecidas e demarcadas pelo Estado.
Quanto ao reconhecimento das terras de comunidades tradicionais, diante do desmonte das políticas ambientais que ocorreram no país entre 2019 e 2022 e como promessa de campanha eleitoral pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, nenhum centímetro de terra indígena e quilombola foi demarcado, permanecendo 64% dessas áreas sem regulação. Nesse período, além de observarmos um retrocesso político e regulatório, a devastação ambiental, as invasões de terras e a violência sobre povos tradicionais se intensificaram ainda mais. Nesse âmbito, como podemos preservar a Amazônia se não assegurarmos o território, a soberania de povos tradicionais fundamentais para a manutenção do que temos de floresta hoje? Populações historicamente pressionadas, perseguidas e que nos últimos quatro anos foram publicamente ainda mais esmagadas.
Nesse contexto, nossa análise demonstra que instituições como o Grupo do Banco Interamericano e do Banco Mundial, o Fundo Verde Climático e outras estão na contramão do necessário para a devida aversão ao aumento da catástrofe climática. Por exemplo, mais de 700 milhões de dólares são considerados para investimento em uma agricultura que sabe-se ser de exportação, com profundos danos climáticos, territoriais e a saúde populacional. A área de transportes, que em muito se conecta à exportação do agro — e com ele nossa água -, encontra-se prestigiada com mais de 1 bilhão de dólares. Abrir transporte no bioma Amazônico vem com cargas mais que conhecidas de desmatamento, violações territoriais e pressão sobre os modos de vida dos povos da floresta.
É fato que o resultado da última eleição presidencial, com a vitória de Luis Inácio da Silva, nos propiciou alguns respiros ideológicos quanto aos direitos de vida e território dessas populações. Além do discurso presidencial em favor da preservação ambiental, das escolhas ministeriais, como Silvio de Almeida e Anielle Franco, tivemos pela primeira vez na história do país um Ministério dos Povos Indígenas através da Ministra indígena Sônia Guajajara e da Secretaria Juma Xipaia. Sem dúvida esse novo movimento nos possibilita ter expectativas mais otimistas após o período nefasto anterior.
Entretanto, muitos desafios políticos que afetam as condições de vida dos povos tradicionais ainda permanecem, como por exemplo, o projeto de exploração de petróleo na costa norte do país a 500 km da foz do Rio Amazonas e a questão primordial para este dia 05 de setembro, a votação do Marco Temporal, na qual se decidirá o direito dos povos indígenas de ocuparem suas próprias terras. O que está sendo votado é a tese de que tais povos só poderiam reivindicar o direito sobre a terra em que ocupavam no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, período histórico em que se tenta formalizar o fim da ditadura militar, durante a qual tais povos foram perseguidos e massacrados no país. Por óbvio, muitos destes haviam se deslocado de seus territórios para sobreviver ao período da caserna.
A tese pode parecer tão absurda quanto a Lei de Terras de 1850 que manteve uma concentração fundiária e privou indígenas e famílias negras escravizadas do acesso e posse das terras que ocupavam. Infelizmente, é o contexto político no qual o país se encontra.
Nossa análise demonstra que um arrefecimento no desmatamento e na violação estrutural dos modos de vida dos povos e populações tradicionais não foi e não é suficiente para a proteção de tal bioma, com a continuação da imposição de agendas voltadas para o mercado. Em um momento de aquecimento da crise estrutural, os agentes dessa agenda vêm pisando no acelerador da destruição em busca de rendimentos, quebrando pactos democráticos para uma viagem ao fundo do poço neoliberal. É necessário que as IFIs e governos façam sua mea culpa, evitem os danos que o período transicional já traz e cessem com suas históricas atuações violatórias, caso realmente tenham interesse em permitir um futuro onde a sobrevivência digna seja possível.
Reafirmamos aqui que a manutenção do território dos povos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais no país são fundamentais não só para a manutenção de suas condições de vida, de seus espaços sagrados, mas também para a preservação do meio ambiente, das florestas, dos rios, da conservação climática.
Ou cuidamos daqueles que são cruciais para a preservação do que ainda resta de nossas florestas e gerações futuras, ou o caos.
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Confira aqui a análise “Um panorama das ameaças à Amazônia: crise climática, contexto político e projetos financiados por IFIs” realizada pela International Accountability Project, pelo Instituto Maíra e pelo Projeto Aldeias, através da utilização do Sistema de Alerta Prévio.
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Alexandre Andrade Sampaio é líder global para o direito ao desenvolvimento e coordenador para América Latina e Caribe da International Accountability Project.
Layza da Rocha Soares é pesquisadora do Instituto Maíra, doutora em economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), diretora regional da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica, pesquisadora do Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB-UFF) e do Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (Finde-UFF)